Muito se tem falado sobre os 100 anos do Samba, tronco principal da música popular brasileira. Mas quase nada se viu ou ouviu dizer sobre a importância da efeméride do ponto de vista do Direito Autoral.
A celebração prende-se à gravação do samba carnavalesco “Pelo Telefone”, obra literomusical, de autoria legalmente atribuída a Donga e Mauro de Almeida, lançada em disco Odeon, em 1917. Tida em geral como o primeiro samba gravado, a obra tem essa primazia contestada por alguns autores. Segundo J. Muniz Júnior [1], baseado em Ari Vasconcelos, a obra seria apenas “o primeiro samba que, sob essa denominação, fez sucesso”, o que é realçado também pela dupla Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello[2]. Antes dele, teriam surgido “Em Casa da Baiana”, de 1911, anunciado na gravação como “samba de partido-alto” e “A Viola Está Magoada”, de 1914, também rotulado como “samba”.
Num necessário parêntesis, salientemos que o registro de obras intelectuais (inclusive as composições musicais, como as do gênero samba, com ou sem letra) foi introduzido oficialmente, no Brasil, pela Lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973. Esse registro, entretanto, é, pela lei em vigor, meramente declaratório e não constitutivo de direito, como, por exemplo, o registro de um imóvel. Assim, o “registro” do samba “Pelo Telefone” atribuído ao compositor Donga, em 1916, seria uma “declaração de autoria”, expressa em um documento acolhido pela autoridade pública, passível de registro em cartório de notas, mas não emanado de um órgão oficial.
Polêmicas à parte, eis que no calor das celebrações o ensaísta e professor de literatura Fred Coelho publicou em sua coluna semanal no Segundo Caderno de O Globo, no dia 30 de novembro último, texto do qual extraímos o trecho seguinte:
“Fazer um disco ‘de samba’, publicar suas partituras, inserir o dado moderno da máquina em prol da circulação de um gênero ligado à oralidade, definir um marco histórico de origem e invenção de uma tradição agora secular, é um ato com uma carga tão intensa que deveria ser louvado nos mesmos moldes da Semana de 1922. Arrisco dizer que pode ter sido até mais impactante e definitivo para o imaginário do país. Não se trata de comparar ‘Pelo telefone’ com os três dias de fevereiro no Teatro Municipal de São Paulo. Trata-se de perceber que a gravação de Donga representa uma mudança mais radical no que chamamos de modernidade brasileira, por sua ponte e síntese entre a África e a máquina, entre a abolição dos escravos e a autoria de uma obra, entre a oralidade e a partitura comercial, entre a cidade invisível e a fundação de um mito de nacionalidade”.
Eis aí, pois a verdadeira dimensão política e social do “Pelo Telefone”.
[1] Do batuque à escola de samba. São Paulo, Ed. Símbolo, 1976, p.27.
[2] A canção no tempo. São Paulo, Ed. 34, vol.1, 1997, p.53.
Nº 133 | 10/01/17 | Pág. 1