“O valor da vida deve estar acima de todas as coisas. Se não, acabamos sendo arrastados, como um cardume”
(José Mujica, ex-presidente do Uruguai).
A função da AMAR é administrar a arrecadação e administração dos direitos de seus associados; não cabendo a nós fazer juízo de valores sobre os repertórios que geram esses direitos. Desde que os direitos sob nossos cuidados sejam inquestionáveis, nossa responsabilidade é cuidar bem deles, de modo que seus frutos pecuniários cheguem corretamente aos respectivos titulares.
Entretanto, algumas circunstâncias que envolvem nosso trabalho vêm criando um quadro preocupante. E o alinhamento de nossa música com o que há de mais simplório e descartável na música consumida hoje em todo o mundo é uma dessas circunstâncias. Que pode inclusive levar à extinção, como um jardim poluído por substâncias nefastas, a música popular que projetou internacionalmente artistas como Ary Barroso, Dorival Caymmi e Tom Jobim, para ficarmos apenas nestes três exemplos.
No mundo em que vivemos, fortemente marcado pelo consumo, nossas opiniões são moldadas pelas grandes corporações que, obedientes às normas do Mercado e ao sistema econômico-político que as acolhe, dominam os meios de comunicação de massa.
Como atestam reflexões de importantes pensadores e pensadoras, como as que dão suporte a este texto (cf. notas abaixo), nossa liberdade de agir e pensar é ilusória, pois até o nosso lazer é controlado e dirigido de modo a pensarmos e agirmos de acordo com os interesses desses conglomerados. E é ilusória também a sensação de felicidade, criada hoje principalmente pela TV e pelas redes virtuais de socialização [1]. E no caso da música isso é percebido muito claramente: somos obrigados a aceitar como boa muita coisa que efetivamente não é.
Vivemos num país onde a educação vem sendo direcionada para a formação, apenas, de capital humano, ou seja, de indivíduos produzidos para se legitimarem exclusivamente por seu valor de mercado, e não por aqueles antigos valores, como conhecimento e opiniões demonstrativos de cidadania [2].
As consequências já se podem ouvir: a música popular brasileira mais executada em shows, rádios, tevês, internet e outras mídias é musical e literariamente pobre em relação àquela que, juntamente com as do repertorio padrão criado nos Estados Unidos e Cuba, formou a trinca melhor do mundo e que hoje não interessa à sociedade de consumo.
Nosso melhor repertório popular, em termos musicais e literários, quase não tem mais execução pública. Como acentuou o jornalista Luiz Fernando Vianna, no debate realizado ano passado pela AMAR em conjunto com o Instituto Casa do Choro (Newsletter nº. 143, novembro, 2017) a discutível qualidade da música que domina o panorama da execução pública no Brasil tem a ver com o velho princípio da “obsolescência programada”, onde o descartável é preferível à permanência – o imediatismo dos “block busters”, sucessos arrasadores, ocupando o lugar da música efetivamente reconhecida como patrimônio cultural do povo brasileiro. A AMAR, repetimos, não faz juízo de valores. Mas não pode deixar de se preocupar com o apagamento da memória musical brasileira e a exclusão gradativa, das planilhas de execução pública, do repertório que consagrou nossa música como uma das melhores do mundo.
[1] Márcia Tiburi – “Escravos felizes” – Jornal do Brasil – 26/03/18, p.8
[2] Margarida Salomão – “Cenário de guerra” – O Globo – 02/04/18, p. 14.
Nº 147 | 21/04/18 | Pág. 2